Um Dia de Besta
Era uma quarta-feira de 29
de março de 1995. Em meu roteiro a serviço de minha empresa constavam vistorias
de prédios no Piauí: Teresina, Campo Maior e Esperantina.
Naquela época, a companhia
aérea com mais vôos para o Piauí era a Vasp. Saía cedinho de Fortaleza por
volta das sete da manhã ainda no velho aeroporto Pinto Martins da Luciano
Carneiro.
Desembarcava em Teresina com
um bafo de ar quente e úmido na cara e, às oito já estava a cruzar o centro de
Teresina, desviando-me de mesas e camelôs na Rua Rui Barbosa. Hospedava-me pelo
centro mesmo no Hotel Teresina Palace. Também a capital piauiense não dispunha
de outros hotéis, não havia prédios nem shoppings centers que hoje são
testemunhos do quão a cidade evoluíu. O jeito era ficar pelo centro mesmo.
Assistir à tardinha a um filme no velho Cine Rex e voltar para o hotel.
Na agência Teresina encontrava-me
com um velho eletricista, consertador de ar-condicionado e funcionário faz-tudo, chamado Edmir Gallas, que se
orgulhava de conhecer cada palmo do prédio. E, todas as vezes, estava ele a
narrar: Luiz Lopes, você sabe quantas vezes eu consertei este fan-coil? Este piso foi colocado em 1964
e até hoje está brilhando. É pedra boa lá de Piripiri.
Subia até o último pavimento
onde hoje há um auditório e ele continuava a mostrar a pilha de tralhas, computadores
Cobra e IBM, motores velhos, induzidos, ventiladores, máquinas de escrever
Remington e sabe mais lá o quê! O
saudoso Edmir Gallas não me deixava trabalhar; ficava me passando o relatório de tudo quanto
fizera desde a última vez que havia vistoriado o prédio. Por fim, subíamos até
a última laje onde mais uma vez ele apontava para os velhos condensadores de
máquinas de ar-condicionado e hastes de pára-raios, sempre reclamando das velhas
telhas de amianto quebradas. De súbito apontava: Eita lá vem chuva!.....Olha
lá, Luiz Lopes como o Rio Parnaíba está azul, nem precisa olhar para o céu,
olha p’ro leito do rio que você vê quanto toró vai cair..... E eu apenas ria
para encerrar o assunto, pois se falo meia frase, ele engata mais duas horas de
conversa.
No outro dia parti para a
Rodoviária Lucídio Portela e embarquei no interurbano para Esperantina. Fui
direto para o melhor hotel da cidade, chamava-se Rimo Hotel, pertencente a uma
rede conhecida no Piauí. Possuía boas acomodações, piscina e um bom café da
manhã com tapiocas, carne-de-sol, mugunzá, sucos, café, leite, queijo coalho e
broas, tão comuns em terras piauienses.
Após o check-in, fui dar uma volta pelas áreas comuns e pelo deck. Lá
estava um senhor gordo, aparentando uns sessenta anos. Logo perguntou-me de onde
era. Simpático, bem vestido, apresentou-se como alto representante de farinha
de trigo Dona Benta do Grupo J Macedo, estendendo-me à mão um cartão de
visitas.
Muito inexperiente, com meus
vinte e poucos anos, disse logo onde trabalhava, o que fazia e o que vinha
fazer. E neste mote, o nobre senhor
representante especial das farinhas de trigo Dona Benta, disse logo que
conhecia um amigo meu também engenheiro, que tinha um sobrinho que estudara no
Colégio Militar, que era primo de um antigo diretor do Banco e tudo mais.
Passou-me seu currículo de
homem honesto e probo, de amigo prestável e trabalhador.
No outro dia, cedinho estava
já no café-da-manhã oferecendo-me carona até o centro da cidade, pois o hotel
era distante. Pensei logo: Daqui que o taxi chegue!.....vou logo com o Geraldo
para o centro e mais cedo concluo o trabalho para retornar à Teresina, donde
embarcaria noutro vôo da Vasp que decolaria às 23:55h. Como chegaria de
madrugada em Fortaleza na 6ª feira, nem mais iria trabalhar. Que bom!.
Aceitei então a carona do distinto e honesto Geraldo até a agência
do Banco. Logo foi-se apresentando ao gerente e vendo se era possível eu
emprestar-lhe duzentos reais, pois seu cartão era do Bradesco e na cidade de
Esperantina não havia como sacar.
De prontidão, saquei o
empréstimo para o Geraldo que embolsou rapidamente como se nunca mais fosse
devolver aquela gorda quantia. Gorda sim, pois em 1995 o Plano Real ainda era
jovem e o real valorizado.
Após o meio-dia, terminados
meus trabalhos em Esperantina, fui para a rodoviária pegar o ônibus para
Teresina. Chegaria à noite, mas com tempo suficiente para embarcar no Vasp para
Fortaleza.
Quando passara um Chevette
SL cor prata acenando: - Luiz, estou indo para Teresina, você não quer ir
comigo?
Ora, com aquele calor e um
ônibus à minha espera com várias paradas até Teresina, aceitei a carona do
Geraldo.
Conversa vai, conversa vem,
logo o Geraldo foi se contradizendo nas suas gabolagens e nos seus vanglorios.
Mas nem isto me fez minimizar a confiança no velho senhor.
E, chegando em Teresina já no
aeroporto, na Praça Santos Dumont, agradeci ao Geraldo. Talvez cansado pelo
calor piauiense, talvez porque todos nós temos mesmo um dia de sermos bestas. Aquele
era meu Dia de Besta.
O Geraldo, descaradamente me pede mais um favor:
Praça Santos Dumont - Aeroporto Petrônio Portela - Teresina
O Geraldo, descaradamente me pede mais um favor:
- Dr Luiz, por favor leve
para minha esposa este envelope. Mas tenha cuidado. Nele há mais de cinquenta
mil reais em cheques que ela deverá depositar amanhã em Fortaleza.
- Também você não me leva a
mal se eu pedir para ver sua identidade. É apenas por segurança, pois estes
cheques não são meus. Apenas para dizer à minha mulher seu nome completo e
coisa e tal.
E, neste lance de se mostrar
preocupado com minha honestidade para encobrir sua malandragem, o Geraldo brecou
meu núcleo caudato, parte do cérebro responsável pela confiança ou desconfiança
em alguém.
- Tudo bem, Geraldo! Disse eu
ingenuamente naquele dia de besta, de abestado que fui. E logo o velho e distinto malando emendou:
- Vou lhe pagar seus
duzentos reais e, mais uma vez: Muito Obrigado!. Vamos na máquina do Bradesco.
Tonalizou o tal Geraldo.
- OK, vamos então.
- Luiz, puxa vida! Não sei
como vou fazer. O cartão está com problemas! Desmagnetizado. Não saca. E agora?
Mas não tem problema não! Vamos ligar para minha mulher que ela já saca o
dinheiro em Fortaleza e, quando você chegar lá para entregar o envelope, ela
lhe paga.
O malandro logo simulou uma
ligação para a esposa na minha frente e emendou num ar hipnótico:
-Amigo Luiz, como você vai
levando mais de cinquenta mil reais neste envelope, você não acharia ruim me
emprestar mais duzentos reais, né? Minha mulher já saca os R$400,00 e pronto.
Tudo OK?!.
- Como abestado, lá estava a
entregar mais duzentos reais ao Geraldo.
Despedi-me do velho Geraldo
e embarquei no vôo Vasp.
Assim que entro no avião,
encontro-me com a Adriana, uma amiga minha que estava no vôo vindo de Brasília.
Acho que a hipnose e meu dia de besta havia terminado. Afinal já era mais de
meia-noite! Logo logo contei à Adriana todo este enredo. E ela num sorriso com
mil palavras, disse: - Luiz, abre este envelope! Tu caíu direitinho.
Mas também não abri. Talvez
por medo, talvez por vergonha ou mesmo por honestidade. Fiquei me remoendo até
Fortaleza.
Cedinho acordei e fui
procurar o endereço de entrega do envelope. Descobri que o velho Geraldo me
informara o endereço de sua ex-mulher, de quem recebi todas as informações do
meliante Geraldo. Aquilo é um cafajeste! Muita gente procura ele! E é porque é
advogado! Você foi enganado, meu filho! Veja o que tem dentro deste envelope!
Rasgando o envelope, logo
caíram papel picado e folhas de um velho caderno de espiral em branco. Nada
havia, nem cheque, nem um rabisco.
Fiquei vermelho. Mas como me
senti abestado! Aquele realmente foi meu dia de besta.
Lembrei-me de ligar para o
hotel Rimo lá de Esperantina e perguntar na recepção pelo endereço do tal
Geraldo. A princípio não quiseram me informar, mas dissera que era amigo do
mesmo e tinha que entregar um remédio urgente para sua velha mãe. Consegui
então o endereço do meliante: Rua Teresa Cristina quase próximo ao prédio do
Dnocs da Duque de Caxias.
Corri prá lá. A casa era
daquelas meio antigas, pintura amarela, desbotada e janelas trabalhadas,
aparentando mais com a casa da Dona Liliosa lá de minha Reriutaba. Bati à porta
e logo fui recebido por duas senhoras. Uma era a mãe do Geraldo, senhora
simples de sorriso brando no rosto enrugado e outra era a irmã do meliante. Num
espasmo, afastei-me da velha senhora, puxando pelo braço da mulher mais nova, a
quem narrei o ocorrido, ameaçando e prometendo mil coisas contra o vagabundo e
velho Geraldo. Com as mãos na cabeça, ela lamentava: - Oh meu Deus, meu irmão
não tem jeito. Ainda com tantos problemas, vai acabar um dia mal!
Meio desesperada, a irmã do
meliante ficou de me ligar tão logo este voltasse de viagem e assim o fez,
devolvendo-me ainda duzentos reais arrancados à força do trapaceiro.
Aquele foi meu dia de besta
do qual me orgulho, pois só aprende quem passa. E como o prejuízo não foi tão
grande, a experiência ficou em conta, pois me serviu como vacina para tantos outros
que nos querem fazer de besta.
Só foram ruins as
brincadeiras dos amigos e de meu Tio. Os amigos me pediam: Luiz, meu nome é
Geraaaldo! - Me empresta duzentos!
E meu tio ria, dizendo: - Meu
sobrinho, graças a Deus que a carona foi curta somente de Esperantina a
Teresina. Já pensou se fosse de Esperantina à Fortaleza, o que você não teria
dado ao Geraaallldo???
Fica aqui narrada a história
de Meu Dia de Besta!