Buchecha
Viajei para Reriutaba na 3ª feira, cedinho, por volta das cinco da
manhã. Peguei meu primo no apartamento dele e rumamos à nossa cidade.
Lá chegando, tossindo
muito, abracei meu pai; ele abençôou-me e, instantaneamente, passei direto
para meu quarto no pavimento superior. E, como não fazia isto costumeiramente, despertou
logo a preocupação dele.
-O que será que meu filho tem? Tossindo tanto, calado, quase não conversou!
Este foi seu pensamento que ouvi bem nitidamente.
Deitado na minha cama, preocupado até mesmo com aquela tosse que
não me cedia espaço para respirar, ouvi o lento passo dele galgando cada degrau
da escada.
– Luiz, o que você tem? Tá doente?
– Não, pai! Somente esta tosse mesmo e cansado da viagem. Mas, não.
Também tinha minhas preocupações do trabalho, dos compromissos, do dia-a-dia.
No outro dia, como adormeci por volta das vinte e uma horas, cinco
da manhã já me deparei com a mamãe na sala me esperando para ir ao sítio. Havia
comprado em Fortaleza umas tintas, umas lâmpadas para serem substituídas e outros adereços para nosso
espaçozinho do pé-de-serra.
Flores lá de nós
Lá chegando, vi nosso caseiro, o Sérgio Buchecha. Sorridente,
tranquilo, pintando na sua calma o portão do sítio. Vez por outra, passava a
mão na cara para espantar uma borboleta amarela.
– Sérgio, e aí? Tudo bem? Tá de moto nova! Que bom, dirigi-me a
ele.
– Oi, dotô, tá tudo bem. Se melhorar, estraga! Dizia, inclinando o
rosto para cima.
Também pudera: sem preocupação com contas, com saúde, com
previdência, com empregados, com impostos! Que vida boa essa do Sérgio, pensava
eu nos meus absortos. Tudo bem que fosse sacrificado financeiramente, morando
numa simples casa, sem mimos nem tecnologia, sem espaço nem ambições.
Ah, aí estava então o segredo de sua felicidade! Sem ambições,
mesmo que as fossem sadias. Sem preocupação no amanhã! Que vida boa essa do
Buchecha, prosseguia em meu pensamento numa momentânea e sadia inveja.
Hoje, lendo um artigo que minha mãe enviou-me por email, lembrei do
Buchecha e de tantas outras pessoas que são felizes apenas com o básico do
básico, com o respirar e um pouco de pão, com o alvorescer e um gole d’água.
Essa era a riqueza do Buchecha.
No artigo do Frei Beto, contextualiza-se o modo de viver do
Buchecha num total paradoxo a(o) inteligente, esbelto(a), rico(a) e
apressado(a) executivo que passa fisicamente vivo e espiritualmente morto nos
hall de nossos aeroportos. Vejamos
então:
Ao viajar pelo Oriente, mantive contatos com monges do Tibete,
da Mongólia, do Japão e da China. Eram homens serenos, comedidos, recolhidos e
em paz nos seus mantos cor de açafrão.
Outro dia, eu observava o movimento do aeroporto de São Paulo: a
sala de espera cheia de executivos com telefones celulares, preocupados,
ansiosos, geralmente comendo mais do que deviam.
Com certeza, já haviam tomado café da manhã em casa, mas como a
companhia aérea oferecia um outro café, todos comiam vorazmente.
Aquilo me fez refletir: 'Qual dos dois modelos produz felicidade?'
Encontrei Daniela, 10 anos, no elevador, às nove da manhã, e
perguntei:
'Não foi à aula?' Ela respondeu: 'Não, tenho aula à tarde'.
Comemorei: 'Que bom, então de manhã você pode brincar, dormir até
mais tarde'. 'Não', retrucou ela, 'tenho
tanta coisa de manhã...'
'Que tanta coisa?', perguntei.
'Aulas de inglês, de balé, de pintura, piscina', e começou a
elencar seu programa de garota robotizada.
Fiquei pensando: 'Que pena, a Daniela não disse: 'Tenho aula de
meditação!
Estamos construindo super-homens e super-mulheres, totalmente
equipados, mas emocionalmente infantilizados.
Uma progressista cidade do interior de São Paulo tinha, em 1960,
seis livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem sessenta academias de
ginástica e três livrarias!
Não tenho nada contra malhar o corpo, mas me preocupo com a
desproporção em relação à malhação do espírito. Acho ótimo, vamos todos morrer
esbeltos: 'Como estava o defunto?'. 'Olha, uma maravilha, não tinha uma
celulite!'
Mas como fica a questão da subjetividade? Da espiritualidade? Da
ociosidade amorosa?
Hoje, a palavra é virtualidade. Tudo é virtual. Trancado em seu
quarto, em Brasília, um homem pode ter uma amiga íntima em Tóquio, sem nenhuma
preocupação de conhecer o seu vizinho de prédio ou de quadra! Tudo é virtual.
Somos místicos virtuais, religiosos virtuais, cidadãos virtuais. E somos também
eticamente virtuais...
A palavra hoje é 'entretenimento'; domingo, então, é o dia nacional
da imbecilização coletiva. Imbecil o apresentador, imbecil quem vai lá e se
apresenta no palco, imbecil quem perde a tarde diante da tela.
Como a publicidade não consegue vender felicidade, passa a ilusão de
que felicidade é o resultado da soma de prazeres: 'Se tomar este refrigerante,
vestir este tênis, usar esta camisa, comprar este carro, você chega lá!'
O problema é que, em geral, não se chega! Quem cede desenvolve de
tal maneira o desejo, que acaba precisando de um analista. Ou de remédios. Quem
resiste, aumenta a neurose.
O grande desafio é começar a ver o quanto é bom ser livre de
todo esse condicionamento globalizante, neoliberal, consumista. Assim, pode-se
viver melhor. Aliás, para uma boa saúde mental três requisitos são
indispensáveis: amizades, autoestima, ausência de estresse. Há uma lógica
religiosa no consumismo pós-moderno.
Na Idade Média, as cidades adquiriam status construindo uma
catedral; hoje, no Brasil, constrói-se um shopping-center. É curioso: a maioria
dos shoppings-centers tem linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas; neles
não se pode ir de qualquer maneira, é preciso vestir roupa de missa de domingo.
E ali dentro sente-se uma sensação paradisíaca: não há mendigos, crianças de
rua, sujeira pelas calçadas...
Entra-se naqueles claustros ao som do gregoriano pós-moderno,
aquela musiquinha de esperar dentista. Observam-se os vários nichos, todas
aquelas capelas com os veneráveis objetos de consumo, acolitados por belas
sacerdotisas. Quem pode comprar à vista, sente-se no reino dos céus. Deve-se
passar cheque pré-datado, pagar a crédito, entrar no cheque especial, sente-se
no purgatório. Mas se não pode comprar, certamente vai se sentir no inferno...
Felizmente, terminam todos na eucaristia pós-moderna, irmanados na
mesma mesa, com o mesmo suco e o mesmo hambúrguer do Mc Donald’s...
Costumo advertir os balconistas que me cercam à porta das lojas:
'Estou apenas fazendo um passeio socrático.' Diante de seus olhares espantados,
explico: 'Sócrates, filósofo grego, também gostava de descansar a cabeça
percorrendo o centro comercial de Atenas. Quando vendedores como vocês o
assediavam, ele respondia:... "Estou apenas observando quanta coisa
existe de que não preciso para ser Feliz"!!
Fortaleza, 08/02/13
Luiz Lopes Filho (prólogo) e texto de Frei Beto.
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