domingo, 2 de junho de 2019

A lambreta

“A verdadeira história desse dinheiro”
Aos 25 anos, meu pai decidiu comprar uma lambreta italiana. 
Às oito horas da manhã, guardou o cartão do banco num dos bolsos laterais da calça de tergal, àquela época uma carta manuscrita contendo os dados do correntista filigranada em autorrelevo com dois selos da República.
Pegou o trem das 8 da manhã e seguiu viagem.
O tempo passou e ainda criança ele me contou o resto da história.
-Meu filho, fui a Sobral, mas quando recebi uma caixinha de madeira toda selada com 500 notas novas em série, fiquei com pena.
Voltei, guardei as cédulas no cofre e aí estão elas sem nenhum mais valor!
Nem dinheiro, nem lambreta!
-Puxa, pai! Como o senhor foi tolo!
-Talvez, mas ninguém sabe dizer a que destino me levaria esta lambreta. Hoje sei o destino que estas cédulas me levaram: o de estar com você hoje aqui!
Luiz Lopes e Silva 
1932-2019

Luto infantil

Em 1974, por volta de abril fui pescar no riacho da Ponte com meu primo Marcelo. 
Quando papai me viu saindo de casa com uma varinha e linha de nylon envolta num anzol de piaba, brigou comigo!
-Sua avó morreu! Estamos de luto! Naquele dia, minha vó Deolinda havia falecido e, papai perdido sua mãe! 
Para mim, com apenas 7 anos de idade, este sentimento não permeava minha mente infantil!
Hoje, ainda muito abalado com a partida do papai, fui obrigado pela minha filha e minha mulher a ir pra a aula de natação! 
Comecei e tentei me abstrair a cada braçada. Aos poucos, uma saudosa melodia ecoava de um saxofone no salão de danças da academia e me conduziu ao passado e às preferências musicais do papai.
Não suportei; minhas lágrimas pareciam me molhar mais que a própria piscina! Parecia que o papai voltava a brigar comigo naquele abril pelo luto de sua mãe, minha vó Diola!
Antes por ir pescar, hoje por ir nadar!
Coisas de saudade! Sei que meu pai não mais brigaria por isso!
Quanta saudade!
Quanta vontade de voltar àquele momento infantil!

Velas de meu pai

Quando meu pai partiu no domingo, um filme de imagens esquecidas não tem fim em minha mente. 
Reavivaram momentos tristes, mas os felizes foram mais coloridos! 
Lembro-me que para mim, menino de poucos e talvez 8 anos, dia de finados não era um dia triste!
Era um dia em que meu pai vendia de tudo em seu comércio. Desde bicicletas até velas.
E, em dia de finados, papai reunia dezenas de meninos para vender velas em caixinhas de papelão contendo de todo os tamanhos: pequenas, médias e grandonas, como assim chamávamos. 
Subíamos pelo beco dos Correios e sem oferecer, as pessoas já pediam um pacote de velas para homenagear seus entes que haviam se ido.
Naqueles trocados, havia nossa parte. 
Aos poucos, de três da tarde até cinco, o movimento aumentava e ia se concentrando no Cruzeiro.
O Cruzeiro era o marco zero do cemitério.
Ali muitas velas eram queimadas por pessoas que não encontravam os túmulos de seus entes. 
Dizia-se e amedrontavam-nos que ali se reuniam todas as almas abandonadas: boas, más, assustadoras e passivas. 
Aquele líquido parafinoso escorria do pé do cruzeiro e percorria as cicatrizes do chão rejeitado e sujo daquele local até perder o valor e solidificar-se em algum buraco de formigueiro.
Terminando a venda das velas, ia me encontrar com meu pai no túmulo da família Lopes & Calixto, onde ele passava horas e horas brigando com o vento pela permanência das velas acesas. 
Naquela época estavam sepultados somente meus avós José Calixto e Dona Deolinda Lopes. 
Todos os demais ali estavam prestando homenagem a seus pais: tio Sitônio, tio Osmundo, tio Deusdedit, tio Assis, tia Beatriz, tia Julita e, por fim, o caçula dos Calixtos: meu pai!
E os dias, anos, décadas correram rápido!
Hoje numa dor imensa, vi meu pai cruzar a imaginária linha de quem está dentro ou fora da lápide. De quem está aquém ou além! 
E não consigo me conformar com essa situação!
Antes era um dia de venda de velas e não sofria uma lágrima de saudades!
Hoje, não me imagino velar meu querido pai!
Amava meus tios! Meus avós não posso assim mensurar o amor. 
Não os conhecia no afeto por tão criança conviver ou nem! 
Mas, meu pai! Ah, papai! 
Não imaginava você sendo velado!
Te amo! 💕e o tempo muda tão rápido!
Ora estamos de um lado, amanhã doutro!
Sejamos fraternos e misericordiosos!