quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Educação Física na Casa da Providência


Aquela atividade escolar não me era tão atrativa, mas fazia parte do currículo escolar e tinha chamada todas às quintas-feiras.

A quadra de mosaicos tinha tons encarnados e uma forte aspereza que a tornava uma lixa dura e quente pelo calor causticante de setembro. As traves eram de tubos metálicos, formando um gol de 3 metros de largura por 2 metros de altura. Seu apoio tinha formato em “L”, o que não garantia ficar sempre em pé. Vez por outra, ouvia-se o grito: “são du mei, a trave tá virando”. Também não tinham redes, o que nos obrigava a buscar a bola quando se marcava um gol ou se chutava muito forte em linha de fundos.

Sua marca se fazia presente nos arranhões de joelhos. A ponta dos dedões dos pés também carregavam a crueldade daquela quadra esportiva, seja no brilho da salmora sobre os pés, seja nas bolhas de queimaduras sob os mesmos. Tudo pelo sacrifício de jogar futebol de salão na quadra descoberta do Colégio e Escola Normal Nossa Senhora das Graças, conhecida por Casa da Providência e que fora responsável pela educação e boa formação de muitas gerações.

Quinta séria do primeiro grau, antigo currículo escolar do MEC. Esta era minha série. Dez a onze anos de idade; corpo entroncado, humor de poucos amigos. Vestíamos um calção azul marinho de algodão com duas listras brancas de um centímetro de largura em cada lateral. No cós, elásticos compridos comprados na mercearia da Dona Tonha Luca.

Dona Tonha Luca era a irmã mais velha e, digamos, gerente do armarinho; a outra era a Dona De Lourdes, mais meiga e amável, ajudava-a a despachar os clientes. Era um prédio de seis portas, quatro portas abertas pelo galpão dos feirantes e duas voltadas para a farmácia do Seu Zé Aguiar. Possuía uma pintura amarela nas paredes externas e uma pintura à base d’água na cor azul-bebê que despontava por detrás das prateleiras entupidas de linhas, brinquedos, artigos de costura, botões e tudo mais que se pensasse em miudezas. A Dona Tonha Luca já partiu, mas a Dona De Lourdes ainda está no nosso convívio, já velhinha, mas sempre sorrindo na calçada de sua casa. Hoje o armarinho já não pertence mais à família Luca Torres, hoje é de outro comerciante. Os bens na realidade não são de ninguém neste mundo; apenas deles tomamos conta enquanto a posse circula entre mãos familiares. Mas quando é trocado por moeda, desfaz-se tão rápido como acetona ao ar livre. Dona De Lourdes gostava muito de cumprimentar-me sorrindo, de perguntar se meu pai estava bem, de perguntar se eu já tinha me casado. Acho que fazia isto apenas por carinho e por sentir saudades de minha tia Beatriz que também já tinha partido e deixara Dona de Lourdes sem companhia de conversa de calçada, já que moravam uma de frente para a outra. A tia Beatriz na parte baixa da rua 25 de Setembro e a Dona de Lourdes do outro lado da linha férrea.

Bom, mas voltando à aula de Educação Física e também à nossa farda, calçávamos um tênis preto, conhecido nacionalmente como “quichute”, cujos cadarços, de tão longos, tínhamos que dá o nó e, do restante, enrolar a sobra, dando volta nas canelas. A camiseta sem mangas era branca somente sem nenhum detalhe, brasão ou nome do colégio. Cinco da tarde, o sol baixava por detrás do muro da quadra da Casa da Providência, deixando algumas sombras na áspera e quente quadra.

Após alguns exercícios de aquecimento sob a autoridade do soldado Araújo, professor designado e recrutado do batalhão de polícia da cidade, cujo contingente ficava prejudicado pela metade nos horários de educação física, os dois melhores jogadores escolhiam seus times e, os menores ou menos aptos nos dribles, ficavam por últimos, completando as equipes.

Mediano, eu ficava como zagueiro juntamente com o Marcelo, um primo meu que mal sabia chutar uma bola e os Tatás, os únicos gêmeos do colégio; um mais calmo chamado Aldemir e outro mais peralta, o Laldemir. No meio de campo e ataque, estavam o Evaristo do Seu Salim, o Gilvan do Seu Gerardo Braga, o Massilon (não sei mais seu paradeiro, lembro que morava na Rua Siqueira Campos); o Dibiriu e o Gerardo do seu Toim Mororó. Acho quem jogava pior era o Marcelo que se distanciava da bola uns 4 metros, corria em linha reta e chutava em ângulo reto, como aqueles bonequinhos de madeira de jogo de totó. Os tatás eram gêmeos e riam por tudo, até quando sofriam um gol e, em dupla sempre levavam vantagem nas brigas que, por qualquer motivo, sempre aconteciam.

Foi num destes dias que me destaquei. Não como zagueiro, nem muito menos como atacante, mas como lutador de luta livre. Ao chutar uma bola, ergui muito a perna e o velho calção rasgou-se, arrebentando a costura inferior e tornou-se uma saia. Logo que viram meu calção totalmente rasgado, com os panos da frente e de trás separados, os Tatás abandonaram a bola e correram na minha direção: “mulherzinha-á, de sainha-á!”. Fiquei vermelho de raiva, correndo atrás de cada um dos Tatás que queriam rasgar ainda mais meu calção, arrancando gargalhadas de todo mundo, do time adversário e dos que assistiam à partida, esperando por sua vez de jogar.

Aceitei um chute no traseiro de um dos Tatás que ele caíu, arranhando o joelho e saindo da quadra. O outro Tatá ainda me insultando, continuava a gritar; “Mulherzinha-á, de saínha-a! Acertei um soco no Tatá, puxei o cabelo dele numa rodada que foi ao chão. De repente, todos pararam de rir e passaram a gritar meu nome como se erguessem meus braços como vencedor da luta, gritando: “- Égua Tatá, apanhou do Luiz Filho.., égua...!.”.

Fomos expulsos da aula de educação física pelo soldado-professor, mas daquele dia em diante, os Tatás passaram a ter medo de apanharem novamente de mim.

À tardinha, por volta das seis horas, voltava para casa. Descia a rampa da escola, atravessava a pracinha que fica ao lado da Igreja da matriz, donde se ecoavam pelas amplificadoras as músicas religiosas do Padre Zezinho, marca sonora maior daqueles tempos de infância, como Utopia, Maria de Nazaré e outras daquela coletânea chamada de Um Certo Galileu.
 Aspecto do entardecer em Reriutaba, entoando as canções do Padre Zezinho por duas amplificadoras que visualizamos nas ombreiras da fachada principal da igreja.

Como estava com o calção rasgado em formato de saia, desci rapidamente e evitei a pracinha, contornando o quarteirão pela rua do seu Zé Taumaturgo e dobrando a esquina da dona Artemísia. E assim findou um dia em que tive tanta raiva, mas que hoje guardo como uma boa recordação de infância.

Lembrança da Casa da Providência


Luiz Lopes Filho
Fortaleza-CE, 28 de novembro de 2011




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