segunda-feira, 24 de outubro de 2011

A galinha que se escondeu atrás do caixão de São Vicente



A galinha que se escondeu atrás do caixão de São Vicente


Nos idos de 1975, quando tinha uns 8 anos, havia um armazém de secos e molhados que pertencera ao seu Luís Taumaturgo.

Era um depósito antigo onde se guardavam as safras de oiticica, cera de carnaúba em pó e em blocos que pareciam rapaduras escuras, além de castanha de caju e fardos de algodão. Naquela época nosso município tinha muitas safras e, sem programas governamentais de melhoria de renda, restava então trabalhar. Ah, como era bom quando os caminhões iam transportar o algodão para Sobral. O armazém era aberto antes dos velhos chevrolets chegarem; e nós, crianças vizinhas, ficávamos escalando aqueles fardos de algodão. Eram nossos pula-pula de antigamente.

Saía um pó fino daqueles fardos, mas nunca pegavámos resfriados daquilo, nem nossas mães preocupavam-se se iríamos cair ou não. As pilhas de algodão ultrapassavam a altura das espessas paredes internas e se batiam com os sacos de oiticica do lado oposto.

Debochava de meu primo que tinha medo de escalar as pilhas mais altas. A brincadeira acabava quando os chevrolets chegavam.

Nos fundos do velho armazém havia um terreno onde se erguia um velho pé de canafístula, poleiro de muita sabiá, rolinhas e azulões. Era do muro do quintal lá de casa que eu passava o dia a mirar os galhos da canafístula, tentando derrubar um azulão ou uma rolinha.

A espingarda de pressão foi um presente de meu pai; e que presente!. Depois de chegar do colégio e o sol cair mais um pouco, subia o muro. Era eu ficando livre das obrigações colegiais e os passarinhos livres para cantar naquela frondosa canafístula.

O Pedim da Dona Quita, amigo meu, tinha melhor mira em baladeira, como assim chamávamos os estilingues de hoje; até porque vivia no meio rural chamado Caiçara e passava as férias caçando. Tinha inveja dele por não ter tão boa mira na baladeira e ele, sem dúvida, de mim, por não ter minha boa mira na espingarda. Dizia ele que se eu acertasse o coração de um beija-flor e engoli-lo ainda tremulando, não erraria mais um tiro. E haja chumbinho tentando matar um beija-flor que, para graça da ecologia, nunca consegui.

Como a arma da vez era a espingarda, ele tinha direito a um tiro caso descesse o muro para o quintal do seu Luís Taumaturgo para pegar algum passarinho abatido pela ingênua maldade daqueles meninos. E isto era o que mais dava medo: descer ao velho quintal e ficar bem perto do caixão de defuntos de São Vicente. Na verdade, aquele caixão era um meio de transporte de pessoas que sequer tinham uma rede para serem transportadas até o cemitério Nossa Senhora do Carmo. Não sei se era a Paróquia ou a Prefeitura que doava este transporte funeral para estes infortunados que, ao serem enterrados, devolviam o velho caixão; não sei se agradeciam ou reclamavam até porque ficava folgado para alguns e apertado para outros. Era guardado num quartinho abandonado e sem portas nos fundos do armazém do seu Luís Taumaturgo.

Quando algum pássaro baleado caía mais para a direita, víamos o caixão: meio losangular, de tecido preto, encostado à parede, com duas fitas brancas em forma de cruz centralizadas em sua tampa. Não havia medo maior do que se deparar com aquela imagem.

Mas sempre quando descíamos ao velho quintal, olhávamos de entreolho para o caixão e corríamos escalando o muro com os peitos e barriga, se arranhando e pulando mais alto do que era possível, como se os defuntos fossem nos aparecer e reclamar do desconforto caixão de São Vicente. Este era o preço que o Pedim pagava para usar a espingarda de pressão e eu, quando queria caçar sozinho.

Certo dia, meu pai ao chegar do trabalho notou a falta de uma galinha do quintal lá de casa e, para nosso temor concluiu logo que tinha fugido para o vizinho: o difamado armazém onde se guardava o caixão.

Subimos o muro e logo vi a galinha cacarejando e caminhando para o quartinho onde guardavam o caixão.

Gritei lá de cima do muro:
- Papai, a galinha não pulou pra cá!
- Que conversa, menino! Deixa eu subir este muro.
-Puxa vida, o papai vai ver. Pensei falando.
-Desça! Vá lá embaixo pegar a galinha!

Desci, atemorizado e, ao me deparar com a galinha atrás do caixão, sequer pisquei os olhos, corri de volta, dei um pulo tão alto que consegui segurar no topo do muro!

Papai não ficou decepcionado com meu medo do caixão e sim surpreso com tanta força ao escalar o muro de uma só vez. É a força do medo! E a galinha lá ficou.

Depois ficamos rindo da palidez de meu rosto e dos olhos esbugalhados do Pedim.

Papai depois chamou o Fifiu ou foi o Sacola, meninos que faziam recados naquela época, para resgatar a galinha detrás do caixão de São Vicente.

Um comentário:

  1. Agora eu ri... pq lembro muito bem desta estoria da galinha como tambem do seu medo que aflorou em todos nos que nao conseguiamos sequer olhar muro adiante...

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