terça-feira, 4 de outubro de 2011

Um dia de chuva

Um dia de chuva

O Natal já havia passado, a virada do ano já havia ficado para trás. Era o início de um novo ano. Com ele, vinham as primeiras chuvas. O prenúncio estava pintado no céu mais escuro, no mormaço da manhã, na revoada de pardais pelas copas das robustas castanholas no canteiro central da praça da matriz ou das algarobas que ensombravam a frente de muitas casas. A do seu Zezé, a do seu Demar, a da oficina do seu Mororó ou das algarobas gêmeas lá de casa e do seu Joaquim, nosso vizinho que possuía uma padaria no quarteirão do mercado.
As chuvas mais fortes aconteciam após o meio-dia. Chuvas pela manhã não eram tão bem-vindas quanto as da tarde. Corríamos para a calçada e já podíamos ver as nuvens escuras que se apontavam por detrás da estação ferroviária. Subíamos a linha do trem para melhor visualizá-las. Minha tia Antonieta não gostava quando dizíamos que o céu estava pretim de chuva. Era uma ofensa à natureza divina. No máximo teríamos que dizer o seu está carregado para chover.
De algumas casas ouvia-se o grito: tira a lenha do quintal, senão não tem fogo mais tarde! Começavam a cair grossos pingos de chuva que às vezes até doía no espinhaço. Talvez nem fosse tão forte assim, mas doesse pela fragilidade do corpo infantil.
Mamãe às vezes não deixava tomar banho no início da chuva, pois a evaporação das primeiras gotas no calçamento quente era na certeza gripe mais tarde para ser tratada. Papai também proibia o banho na primeira chuva. Nos jacarés (biqueiras com formato de boca de jacaré que saíam das fachadas das casas) e nos buracos de descidas de águas das chuvas, desciam com a primeira lavada do telhado, fezes de ratos, sujeiras diversas e isto era perigoso para a saúde. Eis o motivo da proibição. Nas chuvas seguintes os telhados estavam mais limpos e já se podia ver uma grande concentração de crianças que corriam pelos jacarés de cada rua, gritando e correndo em grande alegria. Eram muitos grupos de meninos, uns mais travessos, outros mais contidos. Uns vinham da Rampa, outros da Santa Cruz Velha, outros da Praça da Matriz. Uns bagunceiros, outros menos. Mas no geral, eram todos muito barulhentos.
Quando terminava a chuva forte e se iniciava um sereno fino, trocava o calção molhado, ensaboava-se e colocava uma roupa limpinha.
Pelos meio-fios das calçadas, corria muita água que desembocava mais adiante no Riacho da Ponte. Rasgávamos folhas de papéis de revistas Manchete, de revista Veja, de cadernos de espirais e fazíamos barquinhos de papel. Meu primo que morava próximo nunca sabia fazer um que prestasse. Geralmente tinha que fazer um barquinho a mais para brincar com ele. Colocava uma pedra no dobrar do papel para que nunca o dele ultrapassasse o meu. Logo o dele afundava para minha alegria e zombaria.
Do Riacho da Ponte, subiam inúmeras piabas e pequenos peixes, percorrendo o início da rua pelas sarjetas por onde percorriam a chuva caída. Com o pé, muitos meninos concentravam-se ao longo destas pequenas piracemas para pegar as piabas. Era uma pescaria que só terminava com o pôr-do-sol.
Corria para a cozinha, tratava as piabas e logo o cheiro corria pela casa. Não queria o jantar convencional. Só queria comer piaba com farinha. Até meus pais se alternavam entre o jantar normal e uma colherada desta iguaria de primeiras chuvas.

Depois das oito da noite, a mesa estava agora ocupada por jogadores de baralho que ali permaneciam até por volta das onze. Lá em casa pelo menos duas vezes por semana reuniam-se os amigos do papai para jogar buraco. Nunca apostavam, nunca se desentendiam, era um jogo sadio. Vinham seu Salim, seu Antônio Ximenes, o Silva, o seu Sandoval e sempre a Dó, uma simpática senhora da cidade que teimava em fazer parte do grupo de jogadores. Seu Antônio Ximenes tinha no pulso uma cicatriz que a encobria com uma pulseira.Meu pai falava que tinha sido uma queimadura. Ele sempre reclamava de mim quando abria a geladeira ao chegar suado das brincadeiras de bandeira ou de futebol. Mas gostava dele pela sua simpatia comigo. 

Quando o cheiro de piaba assada tomava conta da atenção dos amigos de meu pai, sempre alguém batia a mão na mesa, dizendo “bati”, ganhei o jogo! A vitória chegava talvez pela desatenção dos demais jogadores no delicioso cheiro de piaba assada.




Um comentário:

  1. impressionante sua memoria descritiva...um relato que nos para no tempo e nos faz dizer entre outras palavras ,era assim mesmo..

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