sábado, 19 de novembro de 2011

Feira de Sábado


Dia de Feira

Próximo lá de minha casa, havia dois pés de ficus (Ficus Benjamina) e era o lar das irritantes lacerdinhas (cujo nome científico Thysanoptera é uma ordem de insetos chamados genericamente de tripes). Quem não se lembra destes terríveis insetos que habitavam as árvores que amenizavam o calorzão de meio-dia em Reriutaba?


Zoom do inseto


 As lacerdinhas teimavam em pular sobre nós quando passávamos por debaixo dos pés de ficus. Se estivéssemos com roupas amarelas ou mesmo claras, elas nos infestavam. Amarelo era a cor mais chamativa para essa praga. Quando uma deles caia no olho era um inferno e ardia como nunca. Corríamos de volta para casa para lavar os olhos vermelhos e lacrimejantes. As lacerdinhas disputavam a sombra conosco crianças que gostávamos de ficar debaixo destas árvores após o almoço. Lá se conversava, jogava-se bila, empurrava-se um carrimã ou mesmo ficava a advinhar quantos vagões tinha o cargueiro do trem que passava à nossa frente.

Algumas residências da cidade possuíam enormes árvores em frente às suas casas, exatamente para obterem sombra nos dias mais ensolarados e lá as lacerdinhas se abrigaram. Revoltados com aquela praga, alguns moradores podavam suas árvores radicalmente. No entanto, ao saírem os primeiros brotos, os insetos começavam a infestar a árvore novamente. Muitas pessoas trocaram o fícus pela algaroba, uma maneira de ficar livre daquele incômodo inseto, originário da Ásia Oriental e que foi introduzido no Brasil em 1961. Em frente lá da minha casa havia dois pés de algaroba: o do meu pai e do seu Joaquim Morais, mas sua sombra não era tão boa quanto a dos pés de fícus.

Quando sabíamos que o fícus estava infestado, desviávamos da calçada ensombreada, indo pelo calçamento pontiagudo e muito quente. À frente da casa da Dona Abigail, havia emparelhados dois pés de fícus e, viam-se muitas pessoas desviarem da calçada para se evitar as lacerdinhas. Mas também este desvio era feito por intrigas. Naquela época, quando nós crianças brigávamos com algum amigo vizinho ou não;  era proibido passar pela calçada do mesmo, mostrando assim sinal de personalidade. Dizia-se que se “tinha vergonha na cara e não se passava em calçada de intrigado”.


               Na foto acima: os velhos pés de ficus da calçada da Dona Abigail


Na sexta-feira à tardinha, os pés de fícus da Dona Abigail passavam a ter três tipos de inquilinos: as lacerdinhas, nós e os feirantes. Dormiam de sexta para sábado em redes armadas sob os pés de fícus. Deitavam-se cedo por volta das oito da noite e, antes do sol aparecer, acordavam lá pelas quatro da manhã, estendendo folhas de bananeiras no chão e arrumavam sobre elas laranjas, limões, tangerinas, maracujás, melancias, jacas. Outros arrumavam também legumes, verduras, mastruz e mais algumas plantas medicinais.

Os feirantes desciam a Serra Grande em seus lotes de jumentos carregados com grajaus cheios de frutas e legumes, forrados e fechados em sua boca com folhas de bananeiras. Os grajaus eram confeccionados de cipós entrelaçados e tinham um formato oblongo. Outros jumentos também traziam em cada um dos lados da cangalha sacos de palha, chamados então de surrões, vedados com costura da própria palha. Neles se transportavam farinha, feijão verde, rapadura e alfenim que é uma rapadura menos densa, de cor clara e que se dissolve com mais facilidade, sendo mais saborosa e mais provocadora de cáries, já que se grudava no palatino e nas gengivas, tornando-se mais agressivas aos dentes. Hoje sabemos porque a maioria dos feirantes eram banguelos.

Na sexta-feira à tardinha corríamos para perguntar se algum feirante havia trazido pitombas. Suas sementes vêm envoltas por matéria carnosa transparente, comestível e de sabor agridoce. Mas o melhor era roer a parte carnuda e, num assopro atingir outro menino. Era nosso paintball daquela época. Mais difícil e, dependendo da época, lembro-me também de uns ramalhetes que os feirantes traziam e eram chamados de remela-de-macacos (conhecido também por pombeiro) e que brotavam de abril a agosto. Na realidade eram pequenas flores cheias de néctar que nasciam no brabo sopé da serra. Nunca mais vi a tal remela-de-macacos na feira de Reriutaba.

A feira seguia um leiaute natural. Sob o galpão coberto, ao lado da bodega do Zé Grande até o armarinho da Dona Tonha Luca,  agrupavam-se os vendedores de farinha, feijão e milho. Alguns deles vinham de Guaraciaba do Norte, Ipu ou São Benedito, mas outros eram de Reriutaba mesmo, que compravam suas mercadorias no pé-de-serra e revendiam ali mesmo na feira de Reriutaba. Destes feirantes, lembro-me do Monteiro, pai do Sacola, menino peralta que deve ter ido trabalhar no Rio de Janeiro e nunca mais tive notícias. Aliás, foi o Sacola que resgatou uma galinha que tinha pulado o quintal lá de casa para o armazém do Seu Luís Taumaturgo.

Na Rua 25 de Setembro, a feira se estendia da sapataria do Seu Doquinha até a calçada lá da minha casa e, neste trecho havia a feira dos peixes vindo do açude Araras (hoje cidade de Varjota). Algumas bancas vendiam somente girigóia, um peixe pequeno, seco e salgado de cor amarelada e pele cinza escura. Seu sabor lembrava um pouco o bacalhau. Outras bancas vendiam peixes frescos como a pescada, a traíra, o cará e a curimatã. Muitos dos clientes compravam curimatãs somente pelas suas ovas que cozidas ou fritas é uma iguaria muito saborosa. Após a secção dos peixes, vinham as bancas de frutas, verduras e legumes. 

No trecho da Rua São Francisco, hoje Rua Agrípio Soares que se estendia da farmácia do meu tio Assis até a mercearia do seu Manel Sinhô, mesinhas de madeira de baixa altura expunham rolos de fumo preto, matéria prima para confecção de cigarros e suprimento de  cachimbos. Alguns fumantes também mascavam este fumo e saíam cuspindo as calçadas com aquela golpada gosmenta de um marrom escuro quase preto. Morria de medo de pisar em golpada de fumo, que na realidade era uma cuspida mais nojenta do que a costumeira.

De todos os feirantes, somente um vinha de Fortaleza e de trem logicamente, que era o único transporte eficaz da época. Em sua banquinha podia-se comprar abacaxis, além de maçãs e uvas, frutas mais caras e inacessíveis para muitos. O Seu Firmino também vendia beterrabas, batatas inglesas, cenouras, repolhos e alfaces. Estes produtos somente eram encontrados ali. De uma idoneidade ímpar, mas também de uma personalidade séria e brincalhona ao mesmo tempo, seu Firmino almoçava todos os sábados na minha casa. Meu pai, por volta do meio-dia, pedia-me para chamar o seu Firmino que, muito embora tendo esta rotina de almoçar lá em casa todos os sábados, só o fazia mediante nosso repetitivo convite. Adorava chamá-lo para almoçar, pois logo ele me presenteava com bombons: drops, chocolate do Zorro, pastilhas de hortelã ou outra novidade trazida da capital.

Quando passei a estudar em Fortaleza, vi que no coração daquele humilde feirante, escondia-se um cidadão de uma presteza infinita e de uma responsabilidade paterna. Era ele que levava encomendas enviadas por nossos pais de Reriutaba para Fortaleza. Nunca reclamou de levar pacotes cheios de carne, de camarão-sossego, de queijo, de doce de buriti, enfim de tudo para amenizar nosso cardápio em Fortaleza com lembranças de nossa terra. Ainda hoje seu Firmino vende suas mercadorias, não mais com a exclusividade dantes, mas com a mesma seriedade e honestidade de sempre.

Quando vinha passar o final de semana em Reriutaba por conta de um feriado na segunda ou sexta, voltava para Fortaleza sob a companhia do seu Firmino que ainda me entregava em domicílio. Seu Firmino é hoje um dos cidadãos que mais tenho respeito em Reriutaba. Não por ter feito tanto favores a meus pais e a mim, mas por ter sido uma pessoa que mais prestou serviços gratuitos e valiosos às famílias reriutabenses que tinham seus filhos estudando na capital.


Doutros feirantes mais memoráveis, citemos o Fuba com seus legumes, o Bastos com suas ferragens e acessórios; o Manel da Nana com café e bolos, o finado Antônio Buchim com laranjas; o finado Zé Gregório com limões e os serranos, vendedores de bolos de manzape. Todos os sábados havia um casal simpático de velhinhos que íam comer estes bolos sentados no batente do comércio do meu pai. Eram a Moniquinha e seu Chico Galvão, genuíno representante da pacatez e simpatia que habitavam a localidade de Altamira, à beira da estrada que liga Reriutaba à Serra Grande.

Ah, lembro-me que a feira terminava em frente à minha casa com fardos e mais fardos de surrões, a forma mais técnica e ecológica de transportar alimentos: eram reaproveitáveis, não sujavam as ruas e conservavam melhor frutas, feijão, milho e farinha. A maior produção era oriunda do distrito Amanaiara que também confeccionava muitos chapéus de palha sob a liderança maior do seu Albano Veras.

Eis, atualmente um final de feira em Reriutaba que retrato também na foto abaixo:
Antigamente, o transporte era realizado principalmente por jumentos que ficavam estacionados do lado oposto da feira, cujo marco era a linha férrea.


Luiz Lopes Filho, 
Fortaleza-CEARÁ, 19 de novembro de 2011.

3 comentários:

  1. Meu amigo Luiz filho sempre leio seu blog sobre a nossa RERIUTABA e quero lhe parabenizar por nos lembrar de bons momentos de nossa cidade,reavivando nossa memória,continue escrevendo relembrando as peripécias de nossa querida RERIUTABA.um forte ABRS do amigo Mozart Farias.

    ResponderExcluir
  2. O texto A feira de Reriutaba nos remonta a um passado e nos dá um retrato de como era antes. Tal e qual! O que me surpreende é você se lembrar de tudo aquilo: pessoas, produtos da época e de como tudo era exposto. Memória fantástica a sua. Não me lembrava mais das remelas de macaco...
    Quanta recordação ! Que bom, você, Luiz Filho, faz-nos relembrar aquele passado que fez parte da educação e formação de nossos filhos. O contacto que mantínhamos com pessoas simples, humildes, porém felizes como foi o caso do casal Moniquinha e Chico Galvão quando relatavam com prazer e alegria de como se divertiram em suas viagens ao Graça a pé, pernoitando e comendo numa ou noutra casa de amigos que faziam em seu percurso. Também fiquei feliz ao sentir em seu relato como era visto o caráter e a lisura no comportamento do Sr. Firmino. Um protagonista real da vida da gente que sem perda de dúvida foi exemplo para todos nós. Parabéns meu filho! Siga em frente!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Muito obrigado, Mamãe!. Sua dedicação à nossa formação como mãe e professora competente de muitos jovens reriutabenses, coloca a senhora no mais digno pavilhão de Reriutaba!

      Excluir